
Em busca do Sagrado que habita em mim
Em busca do Sagrado que habita em mim1
Celeste Carneiro*
Todos nós trazemos em nossa constituição a centelha de luz a qual chamamos de Self, que é a nossa parte mais iluminada, mais sábia, mais cheia de amor.
Também faz parte do nosso íntimo, a face mais obscura, mais inquietante, que nos deixa em conflitos e nos envergonha. É a Sombra.
Somos Sombra e Luz, como é bem representado na filosofia chinesa, no Tao: o Ying e o Yang, o passivo e o ativo, como acontece com o dia e a noite.
Adaptação do símbolo, mostrando que podemos estar no mesmo nível
Jung (1987 e 2015) compara a nossa vida com a trajetória do sol. Ao surgir no horizonte, vai trazendo sua luz que fica cada vez mais forte, até chegar ao brilho e apogeu do meio-dia. Depois vai em busca do seu contrário, o anoitecer. A infância e a juventude estão no amanhecer, a maturidade no meio-dia e o entardecer, assim como a noite é comparada à fase do declínio das condições físicas e mentais, seguida do envelhecimento e da morte. E isso é tudo muito natural. É na tarde e no crepúsculo da vida que nos aproximamos mais do que é sagrado. Embora muitos jovens já busquem esse contato.
Há quem compare as fases da vida com as estações do ano: primavera, verão, outono e inverno. Cada estação tem sua beleza própria.
Conhecendo esses princípios, não nos espanta que, ao nos depararmos com a claridade que em nós habita, e ao expressá-la, logo depois, somos confrontados com a sombra que também assombra as pessoas que convivem conosco. Perfeitamente natural.
Na Psicologia Transpessoal é apresentada a Multidimensionalidade do Ser que engloba os vários aspectos do que nós somos (Carneiro, 2010).
Como num mandala, vamos passando do corporal ao transcendente, a preencher os espaços do círculo com a energia com a qual nos ocupamos no momento: corporal, emocional, mental, relacional, valorativa, volitiva, social, ecológica, chegando ao transcendente para continuar a circular como num espiral até atingirmos o ápice do que somos capazes de alcançar. Unir o diferente dentro de nós, acalmar os conflitos internos, é o caminho para conseguirmos a unidade fora, com as pessoas e com a Natureza.
Fonte: Celeste Carneiro. Imagem central extraída da internet em julho/2023. (http://umbandareligiaobrasileira.blogspot.com/2011/03/conhecendo-sobre-os-chacras.html)
Na década de 80 do séc. passado, tive a percepção desse movimento ao meditar. Pintei as imagens que me surgiram e publiquei no livro Arte, Neurociência e Transcendência, da Editora WAK (Carneiro, 2010).
Celeste Carneiro
O crculo é a representação da nossa individualidade. Na sua borda, estão as emoções mais densas, carregadas de paixões, lembrando labaredas que nos inquietam. Tudo o que vivenciamos com muita emoção, nos leva para esse lugar. Quando nos equilibramos emocionalmente, mentalmente e espiritualmente, nos aproximamos das áreas mais claras, mais suaves e mais tranquilas, até atingirmos o centro da nossa essência. Aí então começa uma jornada para dentro de si mesmo, recapitulando as várias fases da nossa vida, a superar os desafios que se apresentam, até atingirmos o ápice da nossa evolução, quando nos deparamos com o aberto, como chama Roberto Crema (2002) e Jean-Yves Leloup em suas Cartografias da Consciência.
Nesse ponto, estamos plenos, irradiando um amor infinito, pois nos identificamos com o Criador e nos sentimos cocriadores. Essa é a sensação de quem cria, nas mais diversas manifestações humanas. E, como artetera-peutas, convidamos as pessoas a sentirem a plenitude do ato criativo.
Há um caminho a percorrer. Os buscadores costumamos trilhar o caminho da meditação, e são várias as formas de se meditar.
Dr. Roberto Cardoso (2016), fez um apanhado dos vários tipos de meditação e classificou-as de forma bem didática, ensinando o passo a passo como meditar. A pessoa escolhe a que melhor condiz com o seu perfil.
Costumo usar, desde a adolescência, a meditação perceptiva, onde prestamos atenção aos nossos sentimentos, pensamentos, sensações e atitudes no desenrolar do dia e, à noite, antes de adormecer, é feita uma avaliação sintética. É uma forma de meditação contínua. Meditamos em todos os momentos do nosso dia, prestando atenção ao que nos cerca, ao que fazemos, assim como ao que sentimos.
As perguntas são o nosso guia.
O que estou sentindo (ou pensando)?
Onde isso me afeta (no corpo ou no ambiente)?
Quando acontece isso?
Quem? Quem provoca isso em mim?
Por quê? Qual a causa?
Para quê? Qual a intenção?
Nesse processo passamos a nos conhecer melhor e a nos tornarmos mais compreensivos. Não fazemos julgamento, simplesmente observamos o que se passa.
E, no silêncio da nossa alma, sentimos a Presença que nos habita, o Sagrado em nós. O Criador.
O exercício da meditação nos levará ao reino do silêncio onde encontraremos o Sagrado e a paz.
Há uma metáfora da tradição Sufi, intitulada Os sons do silêncio, que nos fala desse exercício:
Um rei mandou seu filho estudar no templo de um grande mestre com o objetivo de prepará-lo para ser uma grande pessoa.
Quando o príncipe chegou ao templo, o mestre o mandou sozinho para uma floresta.
Ele deveria voltar um ano depois, com a tarefa de descrever todos os sons da floresta.
Quando o príncipe retornou ao templo, após um ano, o mestre lhe pediu para descrever todos os sons que conseguira ouvir.
Então disse o príncipe:
“Mestre, pude ouvir o canto dos pássaros, o barulho das folhas, o alvoroço dos beija-flores, a brisa batendo na grama, o zumbido das abelhas, o barulho do vento cortando os céus…”
E ao terminar o seu relato, o mestre pediu que o príncipe retornasse a floresta, para ouvir tudo o mais que fosse possível.
Apesar de intrigado, o príncipe obedeceu a ordem do mestre, pensando: “Não entendo, eu já distingui todos os sons da floresta…”
Por dias e noites ficou sozinho ouvindo, ouvindo, ouvindo…, mas não conseguiu distinguir nada de novo além daquilo que havia dito ao mestre.
Porém, certa manhã, começou a distinguir sons vagos, diferentes de tudo o que ouvira antes.
E quanto mais prestava atenção, mais claros os sons se tornavam.
Uma sensação de encantamento tomou conta do rapaz.
Pensou: “Esses devem ser os sons que o mestre queria que eu ouvisse…”
E sem pressa, ficou ali ouvindo e ouvindo, pacientemente.
Queria ter certeza de que estava no caminho certo.
Quando retornou ao templo, o mestre lhe perguntou o que mais conseguira ouvir.
Paciente e respeitosamente o príncipe disse:
“Mestre, quando prestei atenção pude ouvir o inaudível som das flores se abrindo, o som do sol nascendo e aquecendo a terra e da grama bebendo o orvalho da noite…”
O mestre sorrindo, acenou com a cabeça em sinal de aprovação, e disse:
“Ouvir o inaudível é ter a calma necessária para se tornar uma grande pessoa.
Apenas quando se aprende a ouvir o coração das pessoas, seus sentimentos mudos, seus medos não confessados e suas queixas silenciosas, uma pessoa pode inspirar confiança ao seu redor; entender o que está errado e atender as reais necessidades de cada um.
A morte do espírito começa quando as pessoas ouvem apenas as palavras pronunciadas pela boca, sem se atentarem no que vai no interior das pessoas para ouvir os seus sentimentos, desejos e opiniões reais.
É preciso, portanto, ouvir o lado inaudível das coisas, o lado não mensurado, mas que tem o seu valor, pois é o lado mais importante do ser humano…”
E foi assim que um dia, ouvindo o silêncio, sentindo a Presença, escrevi este poema:
Imanência e Transcendência
Vejo-Te nas sombras,
nos perigos do caminho;
vejo-Te na luz,
no convite à ascensão!
Percebo o Teu olhar
que me perscruta,
nos sofredores e carentes
e me enlevo contigo
no olhar de alguém que ama.
Sinto Tua presença na solidão
e entre afetos me rejubilo.
No mar tranquilo
ou violento,
na alegria
ou na tristeza,
no meu ser imperfeito
e nos homens santos
Tu estás, soberano.
Tu estás dentro de mim,
tão perto, tão pleno,
como não Te ver, Senhor?!
Ilustração: Celeste Carneiro – 1993
Que possamos irradiar a paz dessa Presença para aquietarmos o mundo…
Referências
CARDOSO, Roberto. Medicina e meditação: Um médico ensina a meditar. 6ª. edição. São Paulo: MG Editores, 2016.
CARNEIRO, Celeste. Arte, Neurociência e Transcendência. Rio de Janeiro: Editora WAK, 2010.
CREMA, Roberto. Antigos e Novos Terapeutas. Petrópolis: Vozes, 2002.
JUNG, C.G. Psicologia do Inconsciente. (Obras Completas de C.G. Jung, Volume VII/1). Tradução de Maria Luiza Appy. Petrópolis, RJ: Vozes, 1987.
JUNG, C.G. Espiritualidade e Transcen-dência – Seleção e edição de Brigitte Dorst. Tradução da introdução de Nélio Schneider. Petrópolis, RJ: Vozes, 2015.
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1 Apresentado no IV Fênix Lux – Conexões: Viver é um desafio, iluminar-se um privilégio! Ocorrido no período de 18/07 à 22/07/2023, on-line e presencial. Promovido pela Associação de Arteterapia do Espírito Santo. Publicado na Revista Transdisciplinar – 2º semestre de 2023.
* Celeste Carneiro – é Arteterapeuta, terapeuta Junguiana e Transpessoal (ASBART – 0035/0906 / ALUBRAT – 201740). Membro da Associación Transpersonal Iberoamericana (ATI). Editora da Revista Transdisciplinar. cel5zen@gmail.com